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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

ATRÁS DE MIM, A PLANÍCIE

Peguei a maior toalha que encontrei e joguei tudo dentro. Eram coisas que eu queria, coisas que deixei de querer, coisas que nem lembrava mais que queria. Enrolei tudo numa trouxa disforme e dei o nó mais forte que minha fraca determinação me permitia dar. Joguei o embrulho improvisado sobre as costas. Arquearam-se. Doeram. Caí. Eram toneladas de sonhos gelados que pertenciam a alguém que vivia dentro de mim. Quando cheguei, ele partiu. Levantei, e deixei a trouxa pelo chão mesmo, jogada de qualquer jeito. Não eram pertences meus. Não mais. O dono que cuidasse deles.
Saí dali – seja lá onde fosse “ali” – de mãos vazias e coluna ereta. O que eu precisasse encontraria pelo caminho. Alguns grãos de sonhos. Um par de esperanças novas. Um novo amor que coubesse em mim, mas que ainda ficasse um pouco folgado. Nunca gostei de apertos. O que eu precisasse encontraria pelo caminho.
Eu estava caminhando antes, numa trilha absolutamente reta numa planície. Trilha concretada e plana. Planície concretada e plana. E cinza. De manhã era quente e seco. De noite ventava um vento malcheiroso, era frio e ainda mais seco. Continuei porque achava que aquele era o caminho mais curto para o grande círculo luminoso no céu. Mas descobri, depois de nascerem calos nos calos dos meus pés, que não havia como chegar lá. Agora peguei um caminho cheio de curvas, num vale orvalhado. Árvores desconhecidas crescem por todos os lados. Não há trilhas. Preciso descobrir meu próprio caminho. Enquanto faço isso topo com flores de todos os tons de todas as cores. Ouço cantos e assobios sobre minha cabeça. Nunca consegui enxergar esses cantores e assobiadores, mas qualquer dia desses subirei em uma das árvores e os pedirei que me ensinem a cantar. Também preciso cruzar rios e riachos. Para isso tiro os sapatos e atravesso devagar, sentindo a água correr entre meus dedos, sabendo que ela corre junto com o mundo. Subo morros, montes e montanhas. E, deuses, como é difícil. Vou escalando e ganhando arranhões, cicatrizes e outras dores, mas em algum momento chego ao topo. O grande círculo luminoso está mais perto do que nunca. Choro sempre que o vejo de perto. Sento em alguma pedra e converso com ele durante horas. Ele nunca responde, mas qualquer dia desses subirei até ele e pedirei que me ensine a brilhar. Porém ainda não é o momento. Junto as poucas e preciosas coisas que achei até agora e sigo meu caminho, descendo o morro, monte ou montanha a toda velocidade, de olhos bem fechados, com medo, mas sem nunca parar.
Mas não vou mentir, não pra você: ainda olho pra trás de vez em quando. Ainda posso avistar a planície ao longe. Reconheço, com dificuldade, os contornos de antigos companheiros que insistem em seguir por ela. Não os julgo. Só estão seguindo o caminho que mandaram que seguissem. Eu que fui o desajustado que desistiu da segurança da planície. E olhe só pra mim agora, cheio de arranhões e cicatrizes. Eu, e apenas eu, sou culpado por tudo isso. Culpado pelas marcas doloridas espalhadas por meu corpo. Culpado pelo céu rendado que vejo através das copas das árvores. Culpado pelos pés constantemente molhados. Culpado por não sentir mais culpa. Culpado por sentar na grama e rir sozinho, pensando que nunca estive tão feliz por ser culpado de tantas coisas.